segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Matéra ÉPOCA - Flávia

Matéria ótima,
a história de vida
mais triste que já
vi na vida...

Para darmos valor a vida e suas peculiaridades no dia de hj, segue:


"Saudades de sua voz"

A vida cotidiana de Odele e sua filha Flavia – em coma há quase 12 anos, desde que seu cabelo foi sugado pelo ralo de uma piscina
Fonte: Revista Época - Eliane Brum (texto)

DE AMOR E SILÊNCIOS
Odele não sabe se Flavia ouve suas palavras ou percebe seus carinhos. Para ela, cuidar é a melhor forma de amarQuando Odele sonha com a filha, Flavia tem 10 anos. A menina de cabelos longos, encaracolados nas pontas, fala sem pausas. Gosta de partilhar seu dia, contar as aventuras na escola, tagarelar sobre o futuro precocemente dividido entre uma carreira de administradora e outra de modelo. Abraça e beija muito. Dança, canta e toca teclado. Sua voz povoa o sono da mãe. Quando Odele acorda, porém, o silêncio continua lá.

Deitada na cama do quarto ao lado, Flavia tem os olhos abertos. Não pode mais falar e, embora possa ver, Odele não sabe se vê. A menina calou-se aos 10 anos, quando seu cabelo foi sugado pelo ralo da piscina do edifício onde vivia, em São Paulo. Em dezembro, no mesmo dia do aniversário da mãe, fará 22. Há quase 12 anos, Odele só ouve a voz da filha em sonhos. Agora é a mãe que parece se afogar ao despertar submersa na ausência da filha. “Ela tinha voz de sino”, diz. É dessa voz de sino que Odele sente mais saudade.

Assim se inicia cada dia. E cada dia em que Flavia não acorda é uma perda para Odele. Quem vai imaginar que a voz da filha, que às vezes perturba com sua premência, será um dia a maior saudade da mãe? Que aquelas histórias de criança, contadas quando falta tempo à mãe, seriam pagas com metade de uma vida ou uma vida inteira, se a mãe soubesse que poderia perdê-las?

É uma existência de subtrações e de delicadezas, a dessas duas mulheres. Só faz sentido porque Odele conseguiu fazer da história de dor também uma narrativa de amor.

Flavia abre os olhos durante o dia e os fecha à noite. No coma vígil, os olhos são vigilantes apenas na aparência. Não há consciência da dor ou do prazer. Flavia não se move, mas se sobressalta com ruídos mínimos e esboça sinais de sofrimento. Para os médicos, são apenas reflexos involuntários. Mas como ter certeza sobre quanto ela percebe? Sentiria Flavia, de algum modo, a presença da mãe, o toque da mãe, o amor da mãe? São perguntas que Odele Souza se faz, aos 60 anos. E responde “sim” a todas elas. Como não?

Devastada pelo silêncio da filha, Odele criou uma voz para Flavia. Há três anos ela criou um blog chamado Flaviavivendoemcoma (flaviavivendoemcoma.blogspot.com). Não é um nome qualquer. Poderia ser Flaviaemcoma, mas Odele escolheu a palavra “vivendo” para colocar entre o nome da filha e o planeta inalcançável habitado por ela. Mesmo que não a alcance, para Odele sua filha vive. E, quando Flavia sorri, não é um reflexo involuntário.

Centenas de pessoas no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na Colômbia, em Moçambique e na Espanha testemunham a delicada tessitura dos dias de Flavia e de Odele pela internet. E preenchem com suas vozes virtuais as paredes reais da casa de silêncios onde vive a “princesa adormecida”. Pelo blog é construída a narrativa amorosa da perda cotidiana de uma mãe diante da ausência do corpo presente da filha. “Construí para minha filha uma vida de detalhes”, diz Odele.

Tempos antes de calar-se no fundo da piscina, de onde foi arrancada pelo irmão, quatro anos mais velho, Flavia soube que a mãe de uma amiga presenteou a filha que menstruava pela primeira vez com um buquê de rosas vermelhas. Pediu: “Mãe, você me dá flores quando eu ficar mocinha?”. Odele prometeu. Imóvel e silenciosa, Flavia virou mulher sobre a cama. Cresceu 12 centímetros. Menstruou em coma, aos 13 anos. A mãe colocou rosas vermelhas a sua cabeceira.

No Dia das Mães, é Odele quem escreve à filha. “Vejo você em sua cama hospitalar, mas não sei onde você está, por isso, como há um ano, estou te escrevendo uma carta neste Dia das Mães em que eu adoraria receber o teu abraço, o teu sorriso, o teu carinho, mas tenho de me contentar com tua presença imóvel e silenciosa. É como se você não estivesse aqui. E lamento muito, filha, por nestes anos todos não ter conseguido entender o mistério do estado de coma, lamento por não entender o que ocorreu em seu cérebro, para saber exatamente onde você se escondeu, um lugar aonde nunca consegui chegar para te falar e fazer entender que, esteja onde estiver, você não está só, e que estou sempre por perto a lhe proteger.”

Há quase 12 anos, por volta das 18h30 de 6 de janeiro de 1998, Odele escrevia no computador quando ouviu os gritos do filho mais velho. Pensou: “O Fernando vai incomodar os vizinhos”. Quando olhou pela janela do 8º andar, viu Flavia estendida no deque da piscina do condomínio. A filha tinha descido duas horas antes, de maiô preto, a toalha sobre um ombro, para brincar com o irmão e alguns amigos na piscina de 95 centímetros de profundidade. A menina tinha 1,50 metro. “Tchau, Mami, tô indo pra piscina”, disse. Foi sua última frase.

Odele desceu pelas escadas. Correndo. Quando alcançou Flavia, ela já não estava lá. Só abriria os olhos 16 dias depois. Nunca mais daria qualquer sinal de consciência.

Meses depois, Odele começou a buscar as causas no fundo da piscina. Dividia seu dia entre os cuidados com a filha no hospital e o posto de secretária executiva numa multinacional. Voltava para casa, vestia um maiô e mergulhava na piscina, em pleno inverno, com uma boneca de longos cabelos. Noite após noite, investigava o ralo. A perícia da Justiça deu razão à mãe: a bomba de sucção instalada pelo condomínio era potente demais para as dimensões da piscina. Odele levou o condomínio e a fabricante do equipamento ao banco dos réus.

Quando a filha completou oito meses de coma, Odele disse ao médico que a levaria para casa. Se Flavia pudesse sentir o cheiro da comida, ouvir a voz do irmão, o som dos chinelos da mãe no assoalho, quem sabe não acabaria por despertar? Nesse tempo, Odele sentia tanta dor que, palavras dela, se confundia com a dor. “Eu era uma dor ambulante”, diz. “Observava o ipê florindo-se de amarelo na janela e sentia raiva. Por que só minha filha não floresceria?”

Odele descobriu que o tempo da solidariedade passara. Não porque as pessoas se tornaram indiferentes, mas porque é difícil suportar uma dor que não acaba. “A dor da gente precisa deixar de ser ostensiva para que não nos tornemos insuportáveis para o outro”, diz. “Depois de dois anos, amigos passaram a atravessar a rua quando me viam. Não eram más pessoas, apenas não sabiam mais o que me dizer.”

Um ano depois do acidente, apareceram os primeiros laudos médicos. E a palavra que, ainda hoje, devasta Odele: irreversível. A mãe recusou-se a aceitar. Iniciou uma busca em que caiu em mãos de todo tipo. Escreveu a um lama do budismo tibetano. Peregrinou por igrejas de denominações variadas e centros espíritas. Passou por médiuns com apregoados poderes de cura e também por médicos que ofereciam tratamentos “revolucionários”. Todos lhe prometeram um milagre, no mesmo tom casual com que garantiriam o nascimento do sol no dia seguinte.

Ao levar a fotografia de Flavia a um médium que diz incorporar um famoso médico alemão, Odele ouviu: “Que menina bonita. Vamos tirá-la do coma”. Ela acreditou. Sempre acreditava. Passou seis meses atravessando a cidade para receber injeções espirituais na nuca. Da médica de uma universidade paulistana, ela escutou: “Em 15 sessões ela já vai dar sinais de retorno”. Não havia “talvez”, “quem sabe”. Só certeza.

A cada sessão, Flavia era espetada com cerca de 30 agulhas de acupuntura. A Odele, a médica pedia que fincasse uma agulha em cada dedo da mão e do pé de Flavia até que brotasse uma gota de sangue: “Energia negativa”. “Eu espetava chorando”, diz.

Quando as 15 sessões terminaram, a médica disse: “E se você parar agora e ela despertar na 18ª?”. Odele já tinha “e ses” demais em sua vida. “E se o prédio não tivesse piscina? E se eu tivesse ido com Flavia tomar sorvete naquela tarde? E se...?” Sem poder suportar mais um, ela seguiu com o tratamento. Um dia a médica provocou uma queimadura na pele de Flavia. Só quando queimou a menina pela segunda vez, Odele entendeu que era hora de parar. Havia sido a 54ª sessão.

(...)

Em seu sono, Flavia tem pele de pêssego e cabelos brilhantes, cuidados pelo cabeleireiro Ary Soares, que trata deles desde antes de serem capturados pelo ralo. Não cobra nada. Ninguém toca em Flavia sem dar “oi”, “tchau” e pedir licença. Flavia não fala, mas os habitantes de seu mundo restrito falam com ela. E assim descobre que o esmalte da fisioterapeuta se chama Quinta Avenida.
Embaixo da cama de Flavia, Michele monta guarda. Ela é uma fêmea de poodle branca comprada na esperança de que os latidos despertassem Flavia. Provocam apenas sobressaltos. O nome foi tomado emprestado de uma amiga de Flavia, depois de Odele ter encontrado um bilhete na mochila escolar da filha: “Flavia, eu adoro você. Vou ser sua amiga para sempre. Michele”. Entre as coisas de Flavia, Odele também achou o telefone de uma agência de modelos.

(...)

Ao contrário de todas as mães do mundo, ela tem medo de morrer antes da filha. Odele sabe que ninguém, por melhor que sejam as intenções, será capaz dessa vida de esquecimentos. “A vida me deu muito pouco. Espero que me conceda pelo menos isso”, diz. “Posso morrer no dia seguinte.”

Quando Odele dorme, tem um sonho recorrente. Nele, Flavia dá a mão para a mãe. E elas voam.

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Thalita Cunha - As Briselas.