quarta-feira, 30 de setembro de 2009

PORRA, E O MEU ABRAÇO?

Texto fabuloso de uma amigo querido,

toma aí:


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FRANÇA, LEANDRO.

PORRA, E O MEU ABRAÇO? 17 SETEMBRO 2009




PORRA, E O MEU ABRAÇO?


“Tudo o que sei aprendi na escola das putas”, deveria
exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo,
quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso
cansado, quando os homens são, para ele, apenas
clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende
sua amargura, como suas companheiras seu corpo.
(CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. p. 86.)


Além do uso excessivo dos aparelhos celulares, dos contratos de adesão, dos encontros
virtuais, da expansão da alienação, do culto à futilidade, há outro fenômeno da virada do século
que me incomoda. Por escolha pessoal, dei-lhe a graça de fenômeno da prostitucionalização dos
relacionamentos. Tal como fazem as meretrizes, o tratamento entre os homens passou a ser
conduzido pela falsificada demonstração de interesse enquanto há obrigatoriedade de contato
com o outro. Fora essa exigência, a indiferença é a regra. O reconhecimento da existência do
outro, a sua concreta importância, o conhecimento de sua individualidade, a preservação do
respeito que lhe cabe, são condutas em extinção.


Há não mais que dois meses, pedi a demissão de uma empresa na qual trabalhei por
cinco anos. Ainda que o pedido tivesse em mim o efeito de alívio – pela incompatibilidade de
princípios e pela tensão irretratável gerada –, minha saída representava o encerramento de uma
empreitada. No setor responsável, anunciei o meu desejo de me desligar. A jovem que me
atendeu limitou-se a pedir a minha matrícula de funcionário, sem tirar os olhos da tela do
computador. Dei-lha. Ela registrou a seqüência numérica no computador, imprimiu a folha e me
entregou: Basta assinar aqui. Não pude expressar outra manifestação senão a indagação: Porra,
o meu abraço?


Antes disso, havia tido uma recaída. Procurei um plantão médico para atendimento. Fui
a um hospital particular, região nobre da cidade, tapete vermelho aborrachado, portas
automáticas na entrada, recepcionistas bonitas e bem vestidas. Aguardei por duas horas para que me chamassem. Na sala reservada, o médico antes de fazer qualquer exame prescreveu-me um analgésico, um antibiótico e um antiinflamatório. Teve o cuidado de murmurar que eu poderia comprá-los genéricos, se assim preferisse. Assinou a receita e perguntou: Ah, sim, qual é o seu nome?


Perdido, certa vez, em uma conversa de mulheres, ouvi um relato de como se dava a
depilação em um estabelecimento famoso da cidade. Ela, a narradora, chegou, pegou uma
senha, foi a um quarto, a funcionária pediu que se despisse, aplicou-lhe a cera, arrancou os
pêlos, deu o preço e se retirou. As privacidades tornaram-se fast-food. Sem fofocas de
telenovelas, sem babados da vida alheia, sem confissões de amigas, sem piadas sem graça.


A experiência sublime da prostitucionalização dos relacionamentos, porém, é a de
utilizar um elevador nesta cidade. Os ufanistas de plantão argumentam que é a reserva da
cultura local, o respeito generalizado, a timidez das terras frias. Engodo! Os curitibanos
aprenderam com elas: a invisibilidade é a discrição das putas, o fingimento de não reconhecer
quem se conhece quando não se está a prestar o serviço.


Tomemos nota do que elas sussurram. Sem abraços, sem nomes, sem intimidades, sem
indiscrições: eis o ensinamento das damas da noite...
(Enquanto redigia os presentes raciocínios, fui interrompido pelo toque do telefone. Há
quem afirme tenha sido sina, há quem creia em coincidências. Subscrevo o juízo de que se
comprovou a disseminação e a normalização deste fenômeno nos relacionamentos sociais:
Tenho uma linha de telefone fixo em meu apartamento, cujo número, por questão de
privacidade, jamais forneci a qualquer pessoa ou instituição comercial. Em três anos, não mais
que cinco vezes, este telefone tocou. Ignorei-o em todas elas, com a certeza de terem sido
engano. Desde o começo da semana, porém, ele disparou a tocar insistentemente. Como grande
parte da minha rotina é dedicada a leituras e escrita, o toque intermitente passou a me irritar.
Antes de ontem atendi a ligação: uma garota ofereceu-me a irrecusável proposta de adquirir um
cartão da American Express. Recusei o produto e solicitei que não mais me ligassem neste
número. No entanto, o telefone persistiu.


Minha redação foi suspensa à quarta ligação do dia. Do outro lado da linha, o rapaz
proferiu um texto decorado, enquanto eu tentava lhe dizer que não tinha interesse. Como
alguém que tenta manter diálogo com um animal surdo, tentei lhe interromper por diversas
vezes. No instante exato em que o vendedor parou de vomitar palavras para recuperar o fôlego,
pedi que me informasse o seu nome completo. Ele respondeu: Bruno. Repeti meu pedido,
indagando-o a respeito de qual parte de nome completo ele não havia compreendido. Hesitou
por um momento e me respondeu: Bruno Malaquias. Percebi o cheiro de pilhéria em sua voz...
Lancei-lhe os mais belos impropérios acumulados em todos os anos de minha vida, ofereci-lhe
louváveis predicados à sua pessoa e a todos os seus ascendentes e o ameacei, sim, ameacei-o,
caso ouvisse a sua voz novamente, de ir ao seu local de trabalho e lhe desferir algumas
merecidas bolachas. O rapaz argumentou que isso era falta de civilidade. Arrematei-o: Soletre
civilidade, imbecil! A linha ficou muda.


Dois minutos depois, o telefone voltou a tocar. Parecia ser o gerente do tal Malaquias. A
disfarçar autoridade na voz, quis fazer diversos questionamentos sobre a minha pessoa. Mandeio
para o mesmo lugar que havia indicado ao seu subordinado; e que fossem juntos, de
preferência. Desliguei.)1


Tal como para a comercialização do corpo, o envolvimento afetivo deve ser evitado. Em
tempos de embalagens descartáveis, a empatia é desnecessária. A individualidade do nome
tampouco merece preocupação; utilizemos de suas alcunhas – querida, amiga, flor, anjo – ou de
códigos – cliente, assinante, senha, matrícula.


O voyeurismo da janela indiscreta sempre foi o passatempo do ocioso. A tecnologia,
porém, viabilizou a ruína das divisas da esfera da privacidade: a distância real e a aproximação
aparente dos indivíduos disfarçam a perseguição constante e o tormento de ser interpelado por
estranhos. Em outros tempos, se, a qualquer momento, fossemos sempre alcançados ou
chamados por pessoas conhecidas, mudaríamos de cidade; se nos deparássemos com
vendedores a toda esquina ou dentro de nossas residências, sem autorização para tanto,
sobrariam mortes.


De todas as lições das prostitutas, é a discrição que menos consigo aceitar. Talvez eu
seja um chato, não adaptado aos novos costumes. Talvez, num mundo de sombras, sem rostos, a
luz não seja mais necessária.


Talvez seja inevitável que nos tornemos prostitutas. E já que encerrei o desabafo, meus
anjos, podem se vestir; estão liberados. Não se esqueçam de deixar o dinheiro sobre o criado
mudo. Ou um abraço.


Curitiba, 17 de setembro de 2009.
Leandro França
Advogado / Escritor


1 Ainda que em nota de rodapé, não posso deixar de registrar a minha indignação. Considero um desrespeito que a
minha própria operadora, NET, mantenedora de minhas informações, comercialize meus dados com outras empresas;
é um desrespeito a inconveniência da American Express em realizar mais de dez ligações por dia para tentar vender
seus produtos; é um desrespeito um grupo de cretinos elaborar um script através do qual um bando de analfabetos
acuse seus interlocutores de falta de civilidade...
Adendo: O argumento de que esses vendedores “estão apenas fazendo o trabalho deles” é semelhante àqueles que
justificaram as maiores estupidezes da história e àqueles que deram fundamento aos maiores crimes contra a
humanidade. Essa indulgência é piegas e sem sentido.
LEANDROFRANCA.WORDPRESS.COM


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Thalita Cunha - As Briselas.